atravessava a avenida, apinhada de gente, sem reparar nas pessoas. não sabia se o sol o queimava ou se a fúria incendiava sua pele. passos apressados diminuíam a distância entre o restaurante em que estava e o prédio onde trabalhava. almoçava com amigos quando recebeu a ligação da equipe de segurança da empresa, notificando um incidente com seu automóvel, estacionado na garagem externa do edíficio. vinha vociferando contra tudo e todos. havia apenas duas semanas que comprara o carro e ele era o seu mais novo xodó. tinha loucura por automóveis e juntou um ano de ordenado para comprar o modelo dos seus sonhos. abriu mão das viagens familiares, dos mimos para esposa e dos pedidos das crianças por esse ou por aquele brinquedo. traçara uma meta e nada foi capaz de dissuadí-lo deste prazer vaidoso. sim, ele era vaidoso. ostentar bens era uma forma de mostrar que vencera na vida. da infância pobre à executivo bem sucedido, passou maus bocados. para atender às necessidades sociais que ele mesmo se impôs, trabalhou arduamente, sem férias, sem trégua, sem perceber a falta que fazia à família.
perto do prédio, um amontoado de gente se expremia na calçada. ao aproximar-se, escutou frases de espanto e pesar. conseguiu afastar as pessoas e, atordoado, demorou a entender a situação. engavetado no fundo do seu carro, um ônibus. entre o para-choque dianteiro e o muro do edíficio, um corpo. no para-brisas, um bilhete: "sinto sua falta, querido".
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